Thursday, July 20, 2006

O Senhor de Fez e outros





"Era um homem estranho, dessa massa quente da qual os loucos são estraídos e corria as aldeias e o mundo a gritar o seu fim. É o fim do mundo! E as gentes, simples, sem tempo para meditar, acreditavam na profecia pensada por boca mais culta ou mais sensível. E aquele dia era o dia final. O dia em que a lua crescia, magistral, como a última relíquia do cosmos à humanidade mortal. O dia em que aquele astro se aproximava do zénite, do início do fim. As gentes maravilhadas encolhiam-se, desastradas, vencidas por um destino certo, imediato, circunstancial. E ele estava no meio das gentes, a apontar o grau zero da destruição (...)" (pp 57, Homem de Cajado)


Paulo Reis Mourão, O Senhor de Fez e outros
Ambar, 2002

Sunday, July 09, 2006

Filosofia para Crianças











"Porque é que o homem existe?
- Porque Deus assim o quis.
sim, mas...
O que é que Deus queria fazer com o homem?
E de que Deus se trata?
E se não acreditarmos em Deus?
- Porque a Vida evoluiu milhões de anos até se chegar ao homem.
sim, mas...
Porque é que a vida apareceu na Terra?
O objectivo final desta evolução é o homem?
Poderia o homem não ter existido?
- Porque a Terra tinha que ser habitada.
sim, mas...
A Terra precisava do homem?
O homem precisava da Terra?
O homem não corre o risco de destruir a Terra?
- Porque é o único a poder compreender e a explicar as coisas.
sim, mas...
Para que é que serve compreender e explicar?
Isso quer dizer que o homem é superior a um animal, a uma árvore ou uma estrela?
Como é que sabemos que o homem é o único a compreender?
- Para Nada.
sim, mas...
Será que dizemos isso porque não sabemos a resposta?
O homem poderá existir apenas para si mesmo?
O homem pode não servir para nada?
É aflitivo estarmos cá para nada?

"O que é a vida?" texto Oscar Brenifier ilustrações Jérôme Ruillier

Friday, July 07, 2006

Tender Trap



Marta Hugon voz
Filipe Melo piano
Bernardo Moreira contrabaixo
André Sousa Machado bateria

e
Bruno Santos, André Fernandes guitarra

Wednesday, July 05, 2006

Pessoas Crescidas




"Já houve quem dissesse que um homem sem sombra não tinha consistência. Coisa estranha se pensarmos que a sombra, a sua irrealidade e fugacidade, é o que pode dar consistência a um ser. Neste sentido, o efémero, aquilo que não tem existência, embora tenha ser - como os universais -, dá um corpo a um homem, pois nenhum pode viver sem carregar a sua sombra. As pessoas crescidas tornam-se crescidas quando são acompanhadas pela sua sombra, quer dizer, pela criança que foram. E quando perdem essa criança, quando deixam de ter contacto com ela, é o adulto que julgam ser que fica ferido ou moribundo. Ninguém, na verdade, sabe exactamente o que perde quando perde o que ama. O que se ama, por se amar, está envolvido num mistério que se adensa se acaso o perdemos. Se soubéssemos exctamente o que perdemos, se soubéssemos definir com exactidão matemática o que se perdeu efectivamente, seríamos anjos em deambulação pela terra. O que se ama mede-se pelo valor da perda; a força do ser pelo medo do vazio, da ausência, do nada." (pp 13-14)

"Pessoas Crescidas - O Mal, a Infância, a Amizade"
José Manuel Heleno, Fim de Século

Thursday, June 15, 2006

O Quê Que Quem










"Avós são quem tem as memórias sempre à mão.
Memória deve andar no bolso para nos lembrar em que bolso a trazemos.
Bolso é o lugar onde os segredos se contam pelos dedos."

"Tia é quem nos leva de viagem e nos deixa espreitar pela janela.
Espreitar é o que fazemos quando os nossos olhos são maiores que o mundo.
Mundo é uma bola tão grande que se torna difícil jogar com ela."


O Quê Que Quem
Notas de Rodapé e de Corrimão
Desenhos de Gémeo Luís, texto de Eugénio Roda
Edições Eterogémeas, 2005

Friday, June 09, 2006

O Livro da Felicidade










"O que mais a surpreendia e a fazia feliz era que o grande relógio redondo que pendia por cima das suas cabeças continuasse a tiquetaquear de modo regular e sonoro, sem deitar a correr, que Sam não fugisse dela para parte nenhuma, que ninguém entrasse e lhes dissesse o que fazer. E a tudo isso ela chamava intimamente felicidade, porque durava." (pp 31)

"E ali estava o pequeno armário com os medicamentos - seu, pessoal - ali mesmo ao lado da sala de estudo. E isto são livros, também seus. E isto é um violino.

- Eu sou violonista. E tu, o que és?

E Vera respondeu maquinalmente:

-Eu não sou nada.

Ele continua o seu relato. Ela escuta-o avidamente, parece-lhe que não pode perder uma palavra, que ele precisa de dizer tudo." (pp 33)


O Livro da Felicidade,
Nina Berbérova

Tuesday, May 16, 2006

"Gastar Palavras", Paulo Kellerman


"Um dia, contou-me estória do lápis que vai ao psiquiatra:
Ó senhor doutor, o meu problema é muito simples: não consigo decidir o que fazer, sou incapaz de optar porque ambas as possibilidades que tenho perante mim são más. Se permitir que me afiem, poderei cumprir o meu desígnio, que é pintar; mas se assim for, irei caminhando de afiação em afiação até ao final inexorável: serei afiado até morrer. Por outro lado, se impedir que me afiem, não terei bico, e, portanto, não poderei pintar; ou seja: não terei qualquer utilidade; preservarei a existência mas para quê? De que serviria viver apenas por viver, sem possibilidade de concretizar o propósito da minha existência?
Compreende o meu drama, senhor doutor? Não percebo porque concederam o livre arbítrio aos lápis, confesso que não percebo."
pp 53-54, na estória "Por vezes consigo suportar o teu silêncio"


"Gastar Palavras - Estórias", de Paulo Kellerman, Editora Deriva, 2005